As Negatividades da Vida e a Autenticidade

As Negatividades da Vida e a Autenticidade


Emilio Romero


A tese dialética que o positivo coexiste e supõe o negativo é uma das idéias mais esclarecedoras e fecundas na história do conhecimento. É uma tese,  aliás, até evidente por si mesma que se formula no plano do saber comum das mais diversas maneiras, embora rara vez se tirem todas as conseqüências  dela. Escreve-se e ouvimos dizer: - a luz supõe a escuridão - o grande só existe em relação ao pequeno, ou menor - só há  ricos onde há  pobres -  o prazer  nada seria sem o desprazer, ou na sua ausência -o êxito não consegue esconder o fracasso - a racionalidade e o irracional são inseparáveis -  e muitas expressões mais. Estas são as polaridades que nós amenizamos levando-as para pontos intermédios, que ora acentuam um lado, ora outro -mais pobre que rico, mais inteligente que tolo, nem inteiramente honesto, nem completamente desonesto.

Contudo, existem certas negatividades que parecem igualmente amenizáveis mas nunca superáveis, pois estamos constantemente sentindo sua presença ou circulando pelas sendas que elas impõem.  São negatividades que nos afligem num grau variável, segundo a situação e as circunstanciais, levando a muitas pessoas ao desespero, à depressão e a uma visão muito pessimista da vida. Talvez você esteja pensando em alguns fatores que afligem a tanta gente -a pobreza, a doença, a injustiça, as veleidades da sorte. Todos estes fatores influem de modo ostensivo, mas não estou referindo-me a estes males. São negatividades que entendemos como inerentes à existência humana, que a riqueza, a saúde e os favores da sorte não erradicam, embora amenizem. Eu diria que são sete negatividades que nos acompanham sempre, as vezes roendo-nos a carne, as vezes roçando-nos a pele. Aliás, nem sempre nos apercebemos de sua companhia. São como fantasmas, inclusive no sentido implícito de todo fantasma: são como ficções reais, como realidades fictícias. Estas negatividades, ademais, não são pura negatividade, pois também carregam uma dose de positividade -que de alguma maneira favorece o movimento da vida. São por todos nós muito conhecidas: -a perda   -o fracasso  -a solidão  -a morte  -a incomunicação  -o absurdo  -a angústia.

 

São negatividades radicais -radicais no sentido que estão na raiz mesma de nossa vida. Ninguém escapa delas, embora nos afetem num grau variável segundo seja a estrutura da pessoa - segundo seja sua capacidade para assimilar os elementos tóxicos. Muita gente nem sequer quer pensar nestes fantasmas; preferem acreditar que são simples miragens da mente, simples momentos passageiros. Outros sabem que não como escapar inteiramente deles, que o melhor a ser feito é saber conviver com eles.

 Eu diria que estes últimos são as pessoas autênticas: aqueles que aceitam o que a vida é, sem necessidades de enganos e mistificações. As aceitam até com bom humor, ou apenas com serenidade; nunca tentando ignorá-las. Fala-se muito em autenticidade, dizendo que este tipo de pessoas não apelam para a duplicidade nem se escondem numa fachada de bela aparência. Acredito que são traços distintivos de indivíduos autênticos; apenas digo que aceitar estas negatividades, encarando-as com serenidade, é ainda um traço mais importante. Vejamos todas elas num espaço mínimo. Sobre cada uma delas se tem escrito livros que esquadrinham seus mais variados  aspectos. * -No percurso de uma vida as perdas são inevitáveis; não me refiro às perdas materiais apenas. Estamos perdendo algum bem sempre. Perdemos crenças, valores, além de amigos e seres queridos. Perdemos a juventude, as ilusões construtivas e estimulantes. Vamos perdendo a cada instante a vida, pois a morte habita no coração mesmo de nosso ser. Os existencialistas falam do nada como a contrapartida inevitável do ser, mas o nada é a matéria invisível da qual está feita a morte. *

-A  morte nos preocupa quase sempre, mas não a levamos a sério, salvo quando entramos num período depressivo ou nos casos que nos deparamos de frente com a eminência do fim (doença grave, acidente, falecimento de um ente amado). Depois dos 40 começamos a perceber sua sombra; com o passar dos decênios vai adquirindo corpo, ocupando espaço em nossa vida. Chega um momento que nos deitamos com ela, sem saber se no dia seguinte já se apossou por inteiro de nosso espírito e de nosso corpo. Somos mortais; rara vez nos apercebemos da importância deste fato tão simples e tremendo; por sermos mortais  o brevíssimo lapso de tempo no qual transcorre nossa vida se torna precioso. Se vivêssemos indefinidamente ou por milhares de anos tudo seria diferente; tudo aconteceria com a lentidão da tartaruga (que vive o dobro da espécie humana); talvez fossemos como esses homens-animais que descreve Jorge Luis Borges num de seus contos, que por viverem milhares de anos já nada mais tinha importância para eles. Talvez se tinham tornado imortais, entrado na roda do intemporal e, em conseqüência, a vida carecia de qualquer objetivo. Não existia para eles nem sucesso nem fracasso, simplesmente porque tudo já era o mesmo. * -Talvez não exista fantasma que nos cause maior embaraço e dissabor, levando-nos inclusive à vergonha e ao desvalor, quando entra em nossa casa: o fracasso. O fracasso delata, na percepção da pessoa e dos outros, a incapacidade e a inépcia. Poucos são os que admitem um fracasso revelando a frustração decorrente dele. Tolo engano. A verdade é que em quase todos os empreendimentos de valor os resultados ficam quase sempre bem aquém das expectativas e do esperado. Uma parte considerável de nossos objetivos não se consegue. Não sentimos o malogro em parte porque nos conformamos com a parcela conseguida, em parte porque não estamos dispostos a admitir o fracasso relativo. Racionalizamos.

A história dos chamados triunfadores é geralmente um mito. O sujeito até ganhou muito dinheiro ou conquistou a fama, mas não se curou de seus medos e de sua neurose. Lembre-se dos casos de Marilyn Monroe e de Michael Jackson -dois exemplos nada excepcionais. São os paradigmas gritantes do sucesso e do fracasso. Só quando o sujeito não deseja ter  nada , ou apenas o suficiente, a dicotomia sucesso-fracasso  acaba. * -Os psicólogos não se cansam de enfatizar o lado positivo da solidão. Jadir Lessa, em livro recente, sublinha este ponto: ela nos leva a um maior contato com nós mesmos, permitindo-nos uma consciência mais profunda de nossa radical identidade como sujeitos únicos, agentes e pacientes de nosso destino. Assinala igualmente seu lado negativo: a impossibilidade de uma comunhão permanente com o outro, por acima das inevitáveis contingências interpessoais. Aponta também  a questão da incomunicação que, ao tornar-se ostensiva, acentua o sentimento de solidão -sentimento experimentado de modo lancinante nos períodos depressivos e nos momentos das grandes decisões, que só ao sujeito corresponde fazer sob sua inteira responsabilidade e liberdade. De qualquer maneira, o sentimento de solidão como decorrência da consciência de não contar com ninguém é um dos maiores fracassos humanos. *

-A comunicação é um dos temas de nosso tempo, trilhado e manuseado. Vivemos na época da comunicação eletrônica e da pobreza da comunicação humana. A quanto maior comunicação eletrônica, menor comunicação humana -este parece ser o princípio. Mas não  se pense que a incomunicação  é um fenômeno apenas de nossa época. A verdade é que  quase sempre predomina a pseudo-comunicação. Na vida cotidiana a comunicação interpessoal se mantém  num plano funcional e instrumental. A famosa comunicação eu-tu, que tanto valorizou Martin Buber, é excepcional. A incomunicação não é uma simples conseqüência de um mal uso do código lingüístico. Deriva em grande medida  da intenção comunicativa dos interlocutores e da atitude que orienta o processo comunicativo. Se a atitude predominante é de tipo funcional e instrumental  à outra pessoa interessa muito pouco. Se a intenção é usar ao outro como um mero meio para fins pessoais então o mais propriamente humano se perde ou passa para um lugar secundário. Por outra parte, a comunicação verdadeira se dá mediante o diálogo e o diálogo supõe que os interlocutores saibam escutar -o que é uma atitude pouco comum. Este é um tema muito complexo, que já provocou muita pesquisa, mas todas elas concluem que embora o homem esteja inserido em redes relacionais, continua sendo, em grau apreciável, uma ilha  -desmentindo ao poeta John Donne. *

 -Basta observar alguns aspectos do sistema social e da história humana para concluir com uma idéia que Shakespeare pois na boca de Macbeth, apenas tirando um pouco a radicalidade de seu enunciado: a vida é um absurdo, uma história contada por um idiota, entre o estrépito e a fúria. A história nos parece uma luta sórdida pelo poder entre os que estão nas esferas de comando, com as piores conseqüências para os que estão por baixo. A injustiça e a violência, a prepotência e a brutalidade são demasiado freqüentes como para que as consideremos apenas uma mancha menor no cenário da evolução humana. Isto no nível coletivo. Como fica a história individual? É verdade que nós sempre descobrimos uma certa lógica em nossa trajetória vital. Chegamos ao ponto E mas primeiro passamos por todos os anteriores numa seqüência  compreensível, pelo menos nas suas linhas gerais. Entretanto, por muito linear que seja nosso percurso existem pontos de ruptura, reações estranhas, viradas surpreendentes, conflitos e impasses, nódulos obscuros. Tudo isso nos resulta difícil de entender. Nos comportamos de modo estranho que, já passados os eventos, nos parecem absurdos e inacreditáveis. Como chegamos a pensar em suicídio -e, outras vezes, em assassinato- simplesmente porque o objeto de nossa paixão nos deixou desolados no muro das lamentações? Não demoramos a perceber que o irracional está tanto fora quanto dentro de nós.

* -Preciso referir-me à angustia? Soren Kierkegaard foi o primeiro que nos ensinou o lado positivo desse estado de espírito. Precisamos de uma certa dose de angustia para manter  um nível de vigilância e de procura  -do contrário  nos mantemos num conformismo mole e paralizante. Esta é a angústia existencial (ou real), correlativa da liberdade própria do ente humano. Somos livres e por esta razão somos responsáveis; e por sermos responsáveis nos angustiamos. Responsáveis perante Deus (se você acredita num Ser Supremo), perante  o próximo e perante nós mesmos. Esta é uma das fontes básicas da angústia. Há uma outra: nunca estamos inteiramente predeterminados (como querem os deterministas). Sempre há uma margem considerável  de incerteza. Por esta abertura ao futuro entra a insegurança -um fator associado e disparador da angústia. Existem outros tipos de ansiedade (outro nome para o mesmo fenômeno). No tipo neurótico o sujeito vive com o sentimento constante de ameaça e de vulnerabilidade, precisando de uma série de mecanismos e truques para amenizar e afugentar esta vivência que o dilacera. Na reação de pânico a pessoa torna-se ainda mais sensível a sua fragilidade perante as incertezas, chegando a experimentar diversos sintomas somáticos, que ainda pioram seu sentimento de desamparo. Estes dois tipos obrigam a pessoa a procurar ajuda terapêutica, única maneira de sair do círculo vicioso  desta forma de sofrimento. O leitor pouco  acostumado  a  encarar   os aspectos menos benignos da vida humana  -como são todas as negatividades apontadas acima -   talvez se pergunte se não há um certo pessimismo em nosso enfoque. Eu lhe diria que seria pessimismo  lamentar meramente sua presença; e seria tolice tentar ignorar a existência destes fantasmas que coabitam conosco. Sustentamos que saber encará-los com tranqüilidade  e firmeza, sabendo conviver com eles, constitui o caráter autêntico da pessoa. Por último, não esqueçamos que todas estas negatividades nos levam a valorizar suas antíteses. Valorizamos a vida mais que a morte, as pequenas realizações mais  que o fracasso, a serenidade mais que a angustia, a companhia e o diálogo cordial mais que a incomunicação, o predomínio do sentido mais que o absurdo, as novas possibilidades mais que as perdas.